
Direitinho declaro o que, durando todo tempo, sempre mais, às vezes menos, comigo se passou. Aquela mandante amizade. Eu não pensava em adiação nenhuma, de pior propósito. Mas eu gostava dele, dia mais dia, mais gostava. Diga o senhor: como um feitiço? Isso. Feito coisa feita. Era ele estar perto de mim, e nada me faltava. Era ele fechar a cara e estar tristonho, e eu perdia meu sossego. Era ele estar por longe, e eu só nele pensava (...). Aquela meiguice, desigual que ele sabia esconder o mais de sempre (...). Com que entendimento eu entendia, com que olhos era que eu olhava? Eu conto. O senhor vá ouvindo. Outras artes vieram depois.
(...)
Então eu vi as cores do mundo.
(...)
Entendi aquele valor. Amizade nossa ele não queria acontecida simples, no comum, sem encalço. A amizade dele ele me dava. E amizade dada é amor. Eu vinha pensando, feito toda alegria em brados pede: pensando por prolongar. Como toda alegria, no mesmo momento, abre saudade. Até aquela - alegria sem licença, nascida esbarrada. Passarinho cai de voar, mas bate as asinhas no chão.
...nós dois. A gente dava passeios (...) Era um delém que me atirava para ele - o irremediável extenso da vida (...) E eu me esquecia de tudo, num espairecer de contentamento, deixava de pensar. Mas sucedia uma duvidação (...): eu versava aquilo em redondos e quadrados. Só que o coração meu podia mais. O corpo não traslada, mas muito sabe, adivinha se não entende.
Ah, não; amigo, para mim, é diferente. Não é um ajuste de um dar serviço ao outro e receber, e saírem por este mundo, barganhando ajudas, ainda que sendo com o fazer a injustiça aos demais. Amigo, para mim, é só isto: é a pessoa com quem a gente gosta de conversar, do igual o igual, desarmado. O de que um tira prazer de estar próximo. Só isto, quase; e os todos sacrifícios. Ou – amigo - é que a gente seja, mas sem precisar de saber o por que é que é.
Diz-que-direi ao senhor o que nem tanto é sabido: sempre que se começa a ter amor a alguém, no ramerrão, o amor pega e cresce é porque, de certo jeito, a gente quer que isso seja, e vai, na idéia, querendo e ajudando; mas, quando é destino dado, maior que o miúdo, a gente ama inteiriço fatal, carecendo de querer, e é um só facear com as surpresas. Amor desse, cresce primeiro; brota é depois.
Confiança - o senhor sabe - não se tira das coisas feitas ou perfeitas: ela rodeia é o quente da pessoa.
Por João Guimarães Rosa, em 'Grande Sertão: Veredas'
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