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quarta-feira, 11 de março de 2009

Esse-Meu-Corpo

Esse - Meu-Corpo

A noite passou... Até que o meu mundo se pôs.
O dia resvalava alaranjado. O galo cocoricou anunciando o céu cheio de sol. E o calor aumentando, escorrendo sob o meu rosto. Vozes distantes cortavam o silêncio, desembalando o meu sono.
Eu, cautelosa, estonteada pela fragrância doce-azeda, era invadida por entre o quarto e as narinas, derretendo-me deitada sob o colchão molhado, escondendo o “meu-esse” corpo que esquentava o desejo vazio escorrido nas minhas pernas. Imóvel, alheia ao mundo, admirava o tempo das cores. Ele passava consumindo-me, fulgurante de calor. A medida do tempo era marcada pela transmutação de cores que reluziam invadindo a fresta da minha janela: alaranjava para azular. Esquentava, aquecida num calado fervor.
Entendia o tempo, prostrada e entregue a ele. Despertava. Meu quarto, extensão do meu corpo, era invadido pela claridade do sol, que acendia a fresta aberta sob silêncio de castidade, suspiros, sussurros e gritos agudos, afobados, provocando erupções expelidas pelos dedos das mãos. Acordava-o aceso. “Ele” era meu, o corpo, e a ninguém mais pertencia. Enciumava olhares audaciosos sobre ele. Como num ritual, afundada no desejo, provocava-o rotineiramente, atiçando o fogo. O ritual começava.
Primeiro, com as mãos calejadas do movimento repetitivo do dia e da noite anterior, iniciava comprimindo e apertando o que se guardava já molhado-seco por entre minhas coxas. Alisava, ansiava e arfava, estava perto. Não ousava ainda tocar. Descobri. Provocava-me. Era assim, meu-esse corpo crepitava, ardia queimando-me, pedindo a invasão ousada dos dedos. Com belo jogo de provocação, não rendia ou cedia aos seus apelos instantaneamente. Deitada, inundada pelo feito na noite anterior - cama molhada, vagina molhada e desejo molhado -, provocava-o. Era assim o meu tempo, cores clareando ou escurecendo. Eu, deitada, observava as mudanças noturnas e diurnas das cores, repetindo a brincadeira. Afogava-me de mim por mim mesma.
Segundo, as vozes cortantes que vinham de fora invadindo o meu quarto criavam o frisson da possibilidade de ser flagrada com as mãos sobre ele. Excitava-me a intimidade escancarada. Inundada de mim começava a me bulinar. Enfiava vagarosamente os dedos por dentro da calcinha que abafava o meu sexo molhado. Alisava. Arfava. Endurecia aumentando. Passava a mão na textura rosada, movia.
Terceiro, eu, sem dizer nada para esse-corpo, maltratava-o. Parava na metade de sua vontade, desesperando-o. Jogava. Provocava. Ele pulsava agonizando. Posicionava-me em frente a um espelho que me olhava. Apreciava-o. Pegava-o bruscamente como meu serviçal e o esfregava, mostrando-o ao espelho, zombado de sua vontade de mim. Eu era a cafetina. Os suspiros começavam: gemidos, grunhidos tomavam o silêncio penoso do meu quarto, que era cortado apenas por vozes de fora. Incendiada de desejo, rendia piedosamente aos meus-seus apelos. Despia-o, observando. Sentia-me responsável, sedutora do desejo que o desejo tinha do corpo. Terceiro ritual, aos pouquinhos, contemplando a imagem posta em frente ao espelho tocava com mansidão exaltada de um profissional experiente. Começava a tocar mais forte, mordia os braços, lambia as pernas, era gato contorcionando-se para alcançar o desejo latejante. Acelerava os dedos. Gemia.
Uns passos de alguém da família aproximavam-se. A intimidade invadida, observada por outro incendiava o desejo, tentava tapar a sua boca, esfregava o rosado no espelho gelado, queria comê-lo, possuir, era meu. Passos próximos eram ouvidos. Eu arfava enciumando, acelerava os dedos. Minha tia chegou, debati inundando-me. Ela parada, as pestana dos olhos petrificada maravilhada com o corpo, suspirou gemendo soltando barulhos estridentes e com as mãos abafava o som que saia perturbado pela imagem do corpo. Ela desesperada com urgência foi para cima de mim. Enciumei o corpo. Agarrei o espelho, ele era meu e a ninguém pertencia, minha tia em cima de mim, o espelho quebrou cortando o rosado, um mar vermelho jorrou agitado, minha boca espumou, minha tia empalidecida no seu silêncio espantado agarrou-me bruscamente chorando e lambendo o sangue feliz de contentamento.

"Não me corrija. A pontuação é a respiração da frase, e minha frase respira assim. E se você me achar esquisita, respeite também. Até eu fui obrigada a me respeitar."
(Clarice Lispector)

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